Divinas Tretas #19
Newsletter sobre maternidade e inclusão. Com dicas do peito com as crias e sem as crias do Rio e do Mundo.
Bem-vindas a mais uma edição temática da Divinas Tretas!
Dessa vez, abordando Maternidade e Inclusão.
Como o assunto perpassa as tantas formas de maternidades, resolvemos dar um passo a mais aqui nesse espaço: chamamos convidadas para contribuir com as nossas reflexões. Teremos, assim, mais 5 textos. Ou seja, você está prestes a adentrar a edição mais longa da DT até agora!
Uma edição atípica, sem sombra de dúvidas. E unicamente deliciosa.
Passa um café e vem com a gente.
Aviso: tudo que estiver em azul é link (pode clicar)
Zazá
Por Ana Hemesath - Advogada, baiana-carioca, mora na gringa há 7 anos e meio, casada com Peter e mãe da Mia, de 5 anos, que tem hipocondroplasia, um tipo de nanismo.
“Vou ter uma filha” PONTO
“Vou ter uma filha COM NANISMO”
A primeira frase soa bem mais leve, né?
E foi assim que minha gravidez começou e, no meio dela, a frase ficou mais longa. Na 28ª semana fiz uma ultra e surgiu a suspeita. A minha filha, que eu tinha certeza que seria uma “cavala” (frase que eu falava, já que eu e o pai somos altos – 1,71 e 1,91 m), teria nanismo. Como que se lida com um diagnóstico de um filho atípico? Como se entende que esse filho saiu do padrão? Que ele destoa da maioria? Eu ainda estou aprendendo. Mia tem 5 anos, e tem hipocondroplasia, sendo um dos mais de 400 tipos de nanismo. Ela pode ter entre 1,19 a 1,50 m e possuir ou não características de pessoas com nanismo, como a testa prolapsada ou ser desproporcional.
Não é fácil ver a maternidade também como uma MISSÃO.
Tenho que criar a Mia, empoderá-la pelo fato de ser mulher e, pelo fato de ter nanismo, mas, não é só isso! Eu também tenho que ter forças para mudar o mundo! Se você parar para pensar, o nanismo é a única deficiência onde as pessoas se sentem confortáveis em fazer piada ou serem extremamente inconvenientes. Piadas, fotos tiradas à revelia, “pedala Robinho”, pegar no colo sem consentimento, e por aí vai… As pessoas não têm empatia… Eu ainda não percebi olhares na rua, ou comentários. Porém, uma vez, um dos pais da turma dela falou: ela parece ser mais nova, ela é pequena. E eu expliquei que ela tinha nanismo. E o assunto foi natural, sem tom de pena. Até hoje, que eu tenha conhecimento, ela só sofreu bullying uma vez, indiretamente. Uma pessoa muito próxima, que sabia da condição dela, mandava memes de pessoas com nanismo para um amigo meu, que, incomodado, me questionou se essa pessoa sabia da Mia. Achei muito triste que uma pessoa tão próxima não tivesse esse olhar de carinho, de empatia e seguisse insensível, disseminando esse olhar jocoso, que estimula o bullying.
Então, eu tomei a decisão de manter o mundo que ela vive seguro (dentro das minhas possibilidades, claro). As pessoas que convivem com a Mia sabem da condição dela, para que seja explicado em casa e o bullying não aconteça. Talvez, pensando na mudança do mundo na visão MICRO (os ambientes que ela frequenta), me ajude a alcançar o mundo na visão MACRO (fazer a diferença num todo)!
Não tem nada que me deixe mais feliz do que ver amigos meus defendendo a causa! Desde que meus amigos souberam da condição da Mia, a empatia pela causa tomou conta da vida deles! Desde que ela frequenta a creche e a escola uso a criatividade para explicar aos pais sobre o nanismo. Especialmente, em outubro, que é o mês de combate ao preconceito às pessoas com nanismo, incentivo ao envolvimento e sensibilização com o tema.
Quando conheci a Priscilla Lacerda, que tem um grupo chamado “Não Somos Invisíveis”, o clique foi imediato. Nos tornamos amigas, e em nossas conversas veio a ideia de fazer um livro infantil. Com a ajuda do melhor grupo de mães do WhatsApp (Liga Materna, amo vocês!), a Ligia Rocha comprou a ideia de se tornar a ilustradora, mas com uma condição: a Mia tinha que ser personagem do livro! E assim nasceu “O Mundo Colorido da Girafa Zazá”! Um livro infantil, trilíngue sobre inclusão e diversidade, fazendo parte da Bienal do Livro, no Rio de Janeiro!
Hoje a Mia sabe que tem nanismo. Ela nota que é uma menina pequena. A menor da sala de aula. Ela já disse se sentir incomodada com isto. Eu e o pai acolhemos o sentimento, mas perguntamos o motivo do incômodo. Ela não soube responder. Então apontamos diversas qualidades, características dela que são incríveis, e dissemos que a altura é somente uma parte do que ela é. Um mero detalhe! Aqui em casa temos diversos livros infantis sobre inclusão e empoderamento feminino, para que desde pequena ela acredite no poder e na força que ela tem. E eu acredito que ela já tem essa percepção!
Eu ainda não sei como será quando ela for maior, às vezes fico angustiada, às vezes sofro por antecipação, mas tento viver um dia de cada vez. Ela sabendo que tem uma rede de pessoas que olham por ela, eu sabendo que ela se sente segura, fico mais calma.
Espero que daqui a 10 anos eu volte aqui pra falar: ESTÁ TUDO BEM!
E termino com a frase que eu sempre falo por aí: O caminho de uma mãe atípica é a militância!
Beijos!
Rafa
Por Helena - mãe de duas meninas, uma 👼🏻 Violeta e a Rafa, que tem visão monocular e ausências ósseas cranianas e faciais. Por conta da lesão e prematuridade, Rafa desenvolveu uma hipersensibilidade sensorial. A luta por profissionais que abracem o tratamento a longo prazo é grande, mas sempre tivemos boas surpresas no caminho.
Bom, pra início de tudo, vamos a nós, as mães!
Já estamos juntas há 9 anos. Quando a Rafa chegou, estávamos retomando nossa vida a duas, pós perda da nossa primeira filha, que foi gestada por mim. Estávamos tentando nos encontrar e nos encaixar na normalidade do dia a dia, mesmo destruídas e tendo nossa dor completamente invisibilizada pelos nossos familiares e pela sociedade.
Seguimos recolhendo e reconectando nossos caquinhos e, exatos 9 meses pós-abortamento tardio… Triiiiimmmm, Triiiiimmmm. Nosso telefone tocou num dos momentos que menos esperávamos! Já estávamos na fila de adoção fazia quase 3 anos. Com tudo o que se fala nos grupos de apoio à adoção, que demora anos luz, ouvimos dizer até que era raro acontecer do telefone tocar!
Atendemos no viva voz. A assistente social disse que era um bebê de 3 meses, menina, estava ainda na UTI da maternidade em que havia nascido.
Pausa dramática para ouvir o restante das informações iniciais.
Ela disse sobre problemas de saúde e que, a partir disso, seria uma criança com uma deficiência permanente.
Sim, esperávamos por isso, escolhemos na hora de preencher o nosso perfil que essa poderia ser uma opção para a nossa família, mas não houve nenhum estudo ou pesquisa que tivéssemos feito que nos preparasse para o que vivenciaríamos com essa criança que, desde que houve a ligação, já era nossa filha!
Ao conhecê-la, conhecemos também a sua história, seu histórico médico e entendemos que nada daquilo a impediria de ser uma criança feliz e que sim, novamente veio a certeza de que ela era a nossa filha!
O casal que havia saído do turbilhão da perda, depois de muito conversar e escolher juntas seguir nesse novo mundo, embarcou de cabeça na maternidade atípica.
Rafa tem alteração óssea craniofacial causada por uma queimadura química, como consequência vieram as dificuldades de alimentação via oral e o transtorno de processamento sensorial, até então desconhecido por nós e não diagnosticado. Veio também o peso de ser uma bebê prematura e os atrasos motores e de ganho de aquisições.
Nós, mães, que depois da alta saímos com medo e muito inseguras, ficamos ainda mais perdidas quando entendemos o peso das coisas e a responsabilidade de cuidar de um bebê tão sensível, pequeno e com uma bagagem gigante.
Quase 6 meses só sobrevivendo, no meio desse período, entendemos que precisávamos nos reconectar para que, juntas, conseguíssemos fazer o melhor para a nossa filha, pela nossa família e por nós. Falando assim, até parece fácil né... rs. Como se caísse do céu uma ficha de “hora de se reconectar”... hahaha. Bem que gostaria que fosse assim, mas foi muito o oposto disso. Conversamos muito, choramos demais. A sobrecarga, o cansaço e a solidão foram presentes nestes tempos, conhecido também como puerpério, né? Sim, ele também existe na adoção! Foi difícil encontrar o equilíbrio, encontrar as palavras certas nos diálogos, mais difícil ainda encontrar um tempo para estar. Como mulher, como esposa, como amiga.
Na maternidade atípica, gostam muito de nos rotular como guerreiras ou corajosas. Na maternidade por via da adoção, nos chamam de caridosas e dizem que nossa filha tem sorte… Gente, não! O caminho que já é difícil por si só, com esses acréscimos da atipicidade, adoção e família de duas mães, o peso é quase insuportável! Todos os dias temos algum embate por simplesmente existirmos. Entendemos que juntas, lidamos infinitamente melhor do que nos revezando; entendemos que quando uma tá cansada, é hora da outra assumir, mesmo depois do dia inteiro de trabalho remunerado. Na nossa realidade com zero rede de apoio, temos muitos momentos de tensão e, às vezes, quase sempre, uns surtos!
Não foi, não é e nunca vai ser fácil. Mas, com o tempo, ficamos mais “safas” nas situações. Hoje em dia até conseguimos namorar ou tomar uma cervejinha aos sábados à noite. Hahaha. E, no fim, entendemos que, com tudo o que estamos vivendo nesses quase 2 anos de mães atípicas, não precisamos de elogios passivos agressivos. Precisamos de companhia, precisamos interagir com outras famílias atípicas ou não, lgbtqiap+ ou não, com histórico de adoção ou não, precisamos viver, naturalizar a nossa existência e a nossa família.
Naturalizar o amor, independentemente da forma que ele tem! E sim, isso nos afastou de muitas pessoas, muitos núcleos, até mesmo de familiares. Mas, seguimos porque a vida sempre nos dá a grata surpresa de cruzar com pessoas incríveis e queridas!
Gabinho
Por Leila Donária - mãe do Gabinho (PcD) e da Bia (adoção). É de Londrina no Paraná. Fisioterapeuta, palestrante, doula de adoção e influencer digital.
Eu e meu marido Gabriel somos um casal desde 2002. Enquanto nossos amigos queriam festar, beber e pegar todo mundo, nós já sonhávamos com a nossa família. Nos casamos e anos depois desejamos ter filhos. Demorou um pouco, mas em 2014 começamos a traçar o futuro daquele bebê que eu carregava em meu ventre. Sabíamos o quanto aquela experiência intrauterina era importante, então fizemos tudo certo, conforme os livros mandavam.
Nosso filho seria um menino, teria o mesmo nome do pai, estudaria no colégio tradicional que nós nos conhecemos e na nossa idealização, seria médico, para seguir os passos do pai e do avô. Cantávamos e falávamos com ele, porque era muito óbvio que ele nos ouvia. Para nossa grande surpresa, aquele filho tão idealizado e desejado não nasceu. Nasceu o nosso filho real. Com um diagnóstico de uma síndrome raríssima, muitas alterações neurológicas, compatíveis com a de alguém que vive em estado vegetativo, uma cranioestenose e uma surdez moderada a profunda. Nesse momento, aquela inteligência emocional que carreguei durante anos, simplesmente desapareceu.
A única pergunta que eu fazia era: por que comigo? Com o passar dos meses, eu comecei a administrar todas aquelas emoções, traduzidas em desespero, e minha inteligência emocional foi resgatada cinco meses após o nascimento do Gabinho, quando ele precisou fazer uma cirurgia de grande porte.
Quando entreguei o meu bebê e ele entrou no centro cirúrgico, a sensação de “eu nunca mais vou tê-lo em meus braços” era muito real. O medo de perdê-lo fez com que eu entendesse que nada importava, a não ser encontrar com o meu filho vivo. Aquele foi o início do regaste da minha inteligência emocional que estava na UTI, quase morrendo. Pensei em tudo o que eu e meu filho poderíamos viver juntos, pensei pela primeira vez nas suas enormes potencialidades, mesmo diante de um diagnóstico difícil.
Entendi o significado da frase: diagnóstico não define nada, porque diagnóstico não é destino.
Assim que encontrei com o meu filho vivo na UTI, tratei de resgatar a minha inteligência emocional ali, no mesmo local que ele estava. Prometi para o Gabinho, que não me escutava, mas me sentia, que nossa vida seria maravilhosa, independentemente do controle de tronco, do caminhar, do ouvir ou do falar. Que ele não iria precisar provar nada para ninguém, que bastava ele ser ele mesmo.
E no leito 6 daquela UTI, em meio às lágrimas de alívio e gratidão, uma transformação aconteceu na minha vida. Eu chamo esse dia 6 de fevereiro de O DIA DO RENASCIMENTO; não apenas do Gabinho, mas o da mãe dele, no caso eu.
Eu, que tinha terminado um doutorado, tinha uma carreira sólida como professora universitária, deixei o lado profissional, tantos e tantos anos de estudo, para ser a mãe do Gabinho. Comecei um processo intenso de ressignificação da minha vida. Vivendo ao lado dele, fui percebendo o capacitismo, que é o preconceito em relação à pessoa com deficiência, na maior parte dos casos, por falta de informação.
Decidi falar sobre isso. Abri uma conta no Instagram, sem grandes pretensões, para gravar vídeos sobre algumas situações capacitistas que nós vivíamos. Esse Instagram foi crescendo. E de repente eu me vi falando com milhares de pessoas todos os dias. Hoje somos mais de 100 mil pessoas nesse canal. Me tornei profissional da inclusão e viajo o Brasil palestrando sobre isso, sobre como deve ser o nosso olhar para uma pessoa que é capaz e cheia de potencialidades, pois são apenas pessoas diferentes do “padrão”, mas que são seres humanos tanto quanto qualquer outro.
Viver ao lado do Gabinho mudou a minha perspectiva de vida. Ele me surpreende todos os dias com as sua garra e suas conquistas. Eu costumo dizer que ele é o meu professor da vida.
Maternidade e inclusão
Por Lilian Carvalho - Enfermeira, mãe atípica da Alice (7 anos, autista), especialista em neurociências, educação e desenvolvimento infantil, educadora, palestrante e ativista dos direitos das Pessoas com Deficiência.
A maternidade, na minha experiência pessoal, sempre me convocou a me abrir sem neuras, ou com a menor neura possível, às possibilidades infinitas do universo.
Digo isso porque desde que resolvi engravidar, aos 34 anos, já sentia que era necessário abrir mão de muitas vaidades e disputas que infelizmente reproduzimos: tipo de parto, amamentação, acessórios úteis ou prejudiciais ao bebê, introdução alimentar, retorno ao trabalho, creches, etc.
Priorizei, apesar de levar a gravidez trabalhando umas 60 horas por semana entre posto de saúde, hospital e dando aulas, me manter ativa e principalmente com a cabeça tranquila para fazer tudo certinho (dentro do meu possível).
O máximo que conseguimos nos preparar durante o pré-natal são para doenças que podem ser diagnosticadas nas ultrassonografias (caso apareça alguma má-formação) e eu pouco sabia sobre o Transtorno do Espectro Autista (TEA).
Como fomos observando entre o primeiro e segundo ano de vida da Alice alguns atrasos no desenvolvimento e alguns sinais, digamos, confusos. Começamos, então, a estimular e investigar. Aos três anos fechamos o diagnóstico de TEA.
De lá para cá, enxergo a sociedade como uma grande rede de apoio que pode incluir ou não as pessoas com deficiência - PCD (o autismo, nos termos da lei, é considerado uma deficiência - Lei 12.764/12).
Após viver o meu “susto” que nem chamo de luto, me vi implicada a agir por Alice, para incentivar cada vez mais a autonomia dela. Mas fui conhecendo, principalmente pelas redes sociais, um universo novo de mães de autistas, autistas ativistas, ativistas de outras deficiências e fui “engatinhando” nesse universo até que em 2020, com o Paulo (meu esposo) criamos nosso perfil no Instagram “Pais Além do Espectro” para compartilharmos conteúdo sobre autismo, parentalidade atípica e inclusão de pessoas com deficiência.
Minha maternagem olha para várias outras crianças além da minha filha que também precisam de acesso a serviços de saúde e educação para atenderem suas singularidades com afeto, dignidade e empatia.
Incluir é verbo que falamos em todos os espaços, e que a inclusão não beneficia somente as pessoas com deficiência, mas a sociedade, que precisa urgentemente aprender a conviver com a diversidade humana.
Mães atípicas, como eu, em seus diversos “atravessamentos” e recortes sociais, lutam diariamente para que seus filhos primeiramente não sejam vítimas do capacitismo (grosso modo, é o preconceito contra PCDs), discriminação, e outra grande luta é por acessibilidade, contra as barreiras que impedem a verdadeira inclusão, onde os meus filhos, os seus filhos ou nossos filhos possam ser acolhidos em toda a sua dimensão humana, independentemente de sua deficiência e/ou outros marcadores sociais.
É um destino muito feliz quando saímos do luto pelo filho idealizado e acolhemos, amamos o nosso filho real e conhecemos outras mães, com suas diferentes histórias de vida, mas na mesma causa de pensar na coletividade e lutar para construir uma sociedade inclusiva, junto com os nossos filhos, onde a vida será melhor para todos!
Encaixando as peças
Por Rachel Moratelli - 31 anos, carioca, mãe e neuropsicopedagoga antirracista
“Nossa, como você lida bem com as necessidades do seu filho. Posso passar o seu contato pra fulana (o)? Ela (e) também tem um filho autista e tá ainda descobrindo como é esse mundo”.
Essa é a frase que eu mais escuto quando menciono que o meu filho tem Transtorno do Espectro Autista. Hoje ele tem 7 anos, mas há pelo menos 5 essa abordagem reina na minha vida. Eu não me importo em acolher, pelo contrário, acho fundamental. Mas não espere de mim um romance sobre o assunto. Isso eu não tenho como oferecer. E a verdade é que mesmo 5 anos após o diagnóstico eu também sigo descobrindo esse mundo. O mundo de Ricardo, o meu mundo.
Eu não escolhi ser mãe. Apenas fui. Tive que ser. Fui mãe aos 24 anos em um sistema que não me deixou escolhas.
Pari.
Tive uma maternidade muito solitária e sempre com justificativas para amenizar as cobranças do mundo sob o meu filho. “Não, ele não gosta muito de brincar com outras crianças. Ele é mais na dele”; “Ele ainda não fala, mas já tá na fono”.
“Desculpa, ele é autista”. Essa última frase tornou-se mais comum à medida que Ricardo cresce.
Antes visto como um bebê, recebia o acolhimento da sociedade – tadinho, ele é pequeno. A mesma sociedade agora o rotula como o menino malcriado e eu a mãe permissiva porque ele não entende que não pode simplesmente puxar a batata frita de um desconhecido na rua.
Ora, o sistema que me obrigou a colocar uma vida no mundo não preparou esse mesmo mundo para receber a minha vida.
De fato, eu sempre lidei muito bem com o diagnóstico, mas eu fui criada para enfrentar o mundo. Não muito sentir, nem pensar. Agir.
Oportunamente também tenho uma formação que pôde proporcionar ao meu filho uma evolução neurocognitiva melhor. Então essa é a soma que me traz pra esse lugar de “como você lida bem com isso” sendo que sequer me ofereceram escolhas contrárias.
Ser a mãe de uma criança neuroatípica te tira de muitos lugares. Seja por birra da criança, falta de empatia da sociedade ou por não ter acolhimento devido nas próprias posições que o mercado de trabalho (não) oferece. É como montar um quebra cabeça infinito de 3.500 milimétricas peças: você sempre precisa se reorganizar, girar uma peça, tirar pra acomodar a outra, ser paciente, resiliente e ter em mente que não tem como desistir, porque alguém precisa fazer a vida funcionar.
A vida da criança, a vida da mãe e indissociavelmente a vida da mulher. A vida lotada de terapias, reuniões escolares e exaustiva carga mental. A vida que não vai parar e nem me acolher como eu mereço.
Sendo assim, eu vou montar esse quebra cabeça na marra. Peça por peça, o Ricardo vai chegar lá!
Em construção
Como é a minha maternidade? Vejo e escuto muitas mães falarem da sua maternidade com muita propriedade e segurança, mas eu ainda estou descobrindo. Minha filha tem 2 anos e 4 meses, e até recentemente eu sinceramente não sabia o que era um cromossomo T21. Descobri durante a gravidez, no exame morfológico, o qual é o cromossomo que detecta a síndrome de Down.
Antes de ser mãe, eu convivi superficialmente com pessoas com deficiência. No entanto, esse convívio, ainda que raso, vem desde a infância. Minha mãe trabalhou na APAE e depois dava aulas para a turma de pessoas com deficiência do ensino público. Ainda assim, quando sentei para escrever sobre esse tema, percebi que sei pouco sobre ele e que falamos pouco sobre isso. Eu não falo sobre isso.
Tenho que mudar. Acredito na força das pequenas mudanças.
“Não faça com os outros o que você não gostaria que fizessem com você” a regra de ouro atribuída a Jesus Cristo que encaixa em quase tudo na vida adulta.
Como colocar isso em prática? Em casa, nas conversas durante o café, em que assuntos triviais se misturam com aprendizados e, assim, a educação acontece. No conteúdo que consumimos nas redes sociais, nos livros, nas aulas, palestras e tantos outros lugares. O conhecimento é a chave para a mudança, traz calma e afugenta o medo, e uma vez livres do medo, deixamos a ignorância de lado e nos tornamos mais sábias e empáticas. Não é fácil e nem trivial, mas alguma coisa na maternidade é?
A treta de não falar sobre
Quando uma de nós disse que não poderia falar sobre o tema porque não convivia com alguém com deficiência, eu já comecei achar que deveria escrever justamente sobre isso.
Desde quando não nos questionamos sobre ter perto de nós alguém com deficiência?
Quando eu fui ver creche para a minha maior, pesquisei na internet perguntas que deveriam ser feitas na instituição e uma delas era: aqui é uma escola inclusiva?
Para mim, mãe e assistente social, fazia muito sentido minha filha ter contato com uma criança com deficiência e mais ainda, ter uma escola que tinha como perspectiva a inclusão.
Quando Sofia tinha cerca de 4 anos tinha uma amiga de classe PCD. Para ela não havia nada de diferente além da dificuldade de andar e falar da amiga.
Mas sabe o que senti falta? De uma conversa aberta com a comunidade escolar sobre a deficiência da aluna.
Conversar com os pais, conversar com as crianças, muito além de dizer que a amiga é diferente.
Parece que apesar de incluir, é uma treta falar abertamente sobre a deficiência.
Ontem, coincidentemente, meus filhos que também estudam com uma criança com deficiência disseram que não entendem bem o que o amigo fala e eu precisei me ater em dizer: ele ainda não sabe falar tão bem, você precisa ter paciência. Isso porque, eu não sei quem é, qual deficiência, e nem se isso foi conversado com as crianças abertamente.
Entendo que para muitos pais deve ser difícil essa exposição da deficiência, mas será que a inclusão não seria mais efetiva se todos estivéssemos incluídos? Se não fosse uma treta falar sobre deficiência na escola?
Trabalho de formiguinha pro futuro
Dizem que “Ignorância é uma benção”. Sim, é mais confortável olhar apenas pro nosso umbigo, mas não acho que seja de fato favorável para nós como pessoas e muito menos como mães das gerações que estão chegando.
Comecei minha jornada de mãe de menino bem preocupada em oferecer pra ele uma criação feminista. Entre seus primeiros brinquedos estavam uma boneca, um conjunto de chá, um fogãozinho, ao lado dos muitos carrinhos e super-heróis. Entre seus primeiros livros, histórias com meninas protagonistas e muitas autoras.
Logo, busquei também uma educação antirracista. As personagens das histórias tinham as mais variadas cores de pele, e os exemplos de pessoas negras em posições de excelência chegaram pras conversas da casa.
Da minha vontade de mostrar pra ele um mundo mais diverso do que o branco-classe média-hétero-cis-típico em que ele nasceu e viveu esses primeiros anos, fui buscando histórias povoadas e centradas em personagens de outras raças e origens, famílias configuradas de várias maneiras, modos diferentes de transitar e perceber o mundo através dos sentidos, tentando naturalizar pra ele que existem milhões de formas de se estar no mundo e todas precisam ser respeitadas e valorizadas.
Enquanto escrevo, penso: isso é suficiente? Está garantido que ele vai crescer um cara consciente e inclusivo? Acho que não, sinceramente, mas é um passo.
É um esforço para sair da inércia do lugar de privilégio. Sei que poderia ser muito melhor, mas é o que consigo fazer por agora, esperando que dê certo e que a vida nos traga oportunidades de estar com pessoas diferentes da gente. A minha parte de me educar sigo fazendo, para conseguir educá-lo da maneira que desejo.
PS: Sou muito grata à Ana, que você leu acima, por conversar abertamente sobre o nanismo da Mia e me abrir um mundo de conhecimento sobre essa condição.
Um típico tabu
Quando definimos o tema pra essa edição, me peguei pensando em tantas coisas, nenhuma escrevível. Afinal de contas, não sou uma mãe atípica. Me senti de cara desconfortável de falar sobre algo fora do meu lugar de fala. Fiquei com medo de ser leviana, romantizadora de dificuldades, de errar no tom de qualquer coisa.
E a minha maior relação com a criação de uma criança atípica foi de alguém muito próximo, mas que, talvez por serem de uma geração anterior à nossa, sempre puseram um tabu grande em qualquer diagnóstico. Hoje essa criança cresceu, já é um adulto e segue sem diagnóstico. Justamente por não terem encarado de frente o caso, ele parece estar sempre sendo taxado de desencaixado, fora da realidade, num mundo paralelo. "É o jeito dele", dizem, mas isso traz uma série de angústias que, ao meu ver de semi-espectadora, são mais pesadas do que seria o peso do diagnóstico do Transtorno do Espectro Autista (TEA)
Então me vi com isso nas mãos: um tabu. O tabu que ainda paira sobre pessoas diferentes.
Pra muita gente, é difícil aceitar que seu filho possa ser diferente. Mesmo sabendo que diferente ele já é - o tal do jeito dele - o nome, o rótulo, muitas vezes é indigesto demais para sequer ser considerado. E pra muita gente, é difícil falar sobre - e eu me incluo aqui. Para mim, é difícil falar por não saber tanto sobre o terreno onde estou pisando. E o medo de errar e soar ofensiva me pega de jeito.
Então proponho aqui nesse espaço que me cabe nessa edição que a gente faça uma autocrítica e pense um pouco sobre nossos tabus com relação a pessoas com deficiência ou atípicas de alguma forma. Entender os nossos limites e até onde podemos ser apoio. Tatear nossos próprios tabus é o primeiro passo para curá-los.
A treta de acolher sem saber como
Sempre fui curiosa. Sou dessas de mergulhar nos assuntos. Me vejo fazendo o mesmo quando as pessoas ao meu redor estão passando por alguma experiência que desconheço na prática. O termo atípico me encontrou em algum momento desse caminho. Apesar de ter convivido na minha infância com crianças atípicas, que chamávamos nos anos 90 de “especiais” (termo que até hoje é falado e carrega uma ideia errada do que seja possuir uma deficiência), não tive muito contato na vida adulta.
E aí veio o grupo de mães e aquele emaranhado de mulheres com suas histórias.
Lembro da Ana - minha convidada aqui da news - falar do silêncio sepulcral que emanava a respeito da condição da Mia. Por que as pessoas preferem fingir que não estão vendo? Vergonha de perguntar? De ofender? E a solidão daqueles pais? Com quem eles vão conversar? Um tabu que precisa ser quebrado, normalizado e cada vez mais discutido.
O que aprendi com Ana e outras tantas mães atípicas, como a Maria Karina foi que a gente precisa mostrar que está vendo, sim, porém ser sensível ao momento, àquela mãe e àquela criança. Então, de minha parte, eu digo que estou disponível, que pode contar comigo para falar sobre o assunto (ou não) ou só pra chorar, ou pra rir, ou pra beber - porque ter uma criança atípica não deve ser sinônimo de tristeza!
E vou fazendo meu trabalhinho de casa, que é estudar mais sobre para quando houver oportunidade, perguntar e até já entender o que se estava dizendo sobre um assunto específico daquela deficiência. Quanto aos meus filhos, a gente vai mostrando nos livros, nos desenhos e nas inconveniências que às vezes eles nos colocam, quando apontam um cadeirante, por exemplo. Naturalizar o que é diferente da gente torna todo mundo parte de uma humanidade diversa, que ama e acolhe. Anseio que o mundo seja mais amistoso, em especial com as mães (e pais) de crianças atípicas.
Dicas do Peito!
Com elas (as crias)
Sessão azul
Da Dani
Você sabia que existe um projeto com eventos de cinema, teatro, aquários para crianças com distúrbios sensoriais e suas famílias?
O projeto foi baseado no Cinematerna, pensando na inclusão desse público infantil. As Sessões Azuis acontecem em cinemas dos estados da Bahia, Distrito Federal, Espírito Santo, Goiás, Minas Gerais, Mato Grosso do Sul, Pará, Pernambuco, Paraná, Rio de Janeiro, Santa Catarina e São Paulo.
Divulgue para quem não conhece!
Inclusão pra criança
Da Ju
Assim como a gente adulta precisa ver e conhecer outras realidades, as crianças ganham muito com leituras e desenhos animados com e sobre a diversidade de formas de estar no mundo. Sem moralismo ou paternalismo, esses livros e desenhos aqui trazem personagens e narrativas bem interessantes para iniciar boas conversas com os pequenos.
Série animada:
Time Zenko, vai!
Dreamworks/NetflixNiah, Ari (cadeirante), Ellie e Jax estão sempre prontos para fazer uma boa ação. Eles ajudam as pessoas e se esforçam para resolver os problemas da cidade.
Livros:
O que aconteceu com você?
James Catchpole e Karen George
Tradução Caroline Chang
Editora L&PM
O que aconteceu com você? E se fizessem a você a mesma pergunta, durante toda a sua vida? E se essa pergunta trouxesse com ela lembranças tristes? É o que ocorre com João, um menino que só tem uma perna. Ele não aguenta mais ouvir “o que aconteceu com você?”. Tudo o que ele quer é... brincar de pirata. É baseado nas experiências do próprio autor quando criança.
A surda absurda
Cece Bell
Tradução Maurício Muniz
Editora Geektopia
Este álbum em quadrinhos autobiográfico, finalista do Kirkus Prize, traz uma história divertida e sensível sobre como viver e crescer sendo uma menina surda. Também é um retrato inesquecível do crescimento, e todos os momentos superlegais e superembaraçosos ao longo do caminho.
Menino baleia
Lulu Lima e Natália Gregorini
Editora Mil CaramiolasRoger tem olhos de baleia. Deve ser porque dentro dele mora uma. Uma enorme, misteriosa e quieta baleia. Como deve ser carregar a profundidade do oceano dentro de si? Neste livro, somos convidados a deixar nosso barquinho seguro na superfície e mergulhar com Roger nesse universo tão novo quanto especial. Com muita sensibilidade, a história nos aproxima das crianças autistas e nos mostra que o desconhecido pode ser também encantador.
Maternidade e inclusão
Da Marcela
Outro dia voltei a ver Mundo Bita com o caçula pedindo pra assistir alguma coisa (vê a mais velha e já quer, né). E achei um vídeo deles sobre PCD que achei bem bonitinho e legal pra introduzir o tema com as crianças. É o "A diferença é o que nos une". Vale ver!
O mundo colorido da girafa Zazá.
Da Pri
Escrito por Priscilla Lacerda e ilustrado por Ligia Rocha, o livro pretende ser um aliado à luta anticapacitista, auxiliando pais e professores da primeira infância. Este é o primeiro volume de uma coleção e quer mostrar que a altura é só um mero detalhe. Você pode adquirir o seu diretamente com a minha xará pelo telefone mesmo (21) 97035-5031. Ela mora no Rio, então facilita se você é daqui também.
Sem elas (as crias)
Colar de Girassol
Da Dani
Você conhece o colar de girassol?
O colar do girassol foi criado com objetivo de facilitar e humanizar o atendimento às pessoas com alguma condição de saúde não perceptível facilmente pelos que estão ao redor. O instrumento facilita o acesso da pessoa com deficiência em serviços públicos e privados.
Feed Diverso
Da Ju
Já tem um tempinho que eu tenho me esforçado em diversificar meu feed no Instagram, com a intenção de conhecer mais sobre outras maneiras de existir e maternar além da minha. Ainda que venham em recortes bem fotografados, acredito ser importante saber das felicidades e dificuldades das mães atípicas para podermos agir.
Aqui, 3 mulheres que eu gosto muito de ler e acompanhar a rotina, com seus filhos que têm diferentes transtornos, condições e deficiências:
Glaucia Batista - Maria Karina - Franciele Martins"Douglas", de Hannah Gadsby
Da Marcela
A comediante australiana Hannah Gadsby ficou famosa no mundo inteiro depois do sucesso do seu espetáculo de stand-up "Nanette", que teve uma apresentação na Ópera House de Sydney gravada e veiculada pela Netflix. Depois que Nanette foi ao ar, Hannah começou a receber diversos feedbacks de pessoas se identificando com a forma como ela pensa, e perguntando se ela estava no espectro autista. Ela, até então, nunca tinha pensado sobre isso, mas começou a se inteirar do assunto e por fim buscou um diagnóstico para si. Descobrir-se autista fez com que a comediante resolvesse fazer um novo espetáculo com essa temática, o "Douglas", também disponível na Netflix. Recomendo demais ambos os shows. A Hannah é demais!
Ivan Baron
Da Pri
Ele ficou mais famoso ainda após subir a rampa com Lula, mas eu já o seguia nas redes e acho uma ótima pedida para entender sobre capacitismo. Ele traz vídeos muito explicativos sobre a temática. Ivan é potiguar e teve meningite quando criança, o que lhe causou paralisia cerebral.
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